Você é psicóloga ou estudante de psicologia e gostaria de trabalhar com mulheres em situação de violência? Você é psicóloga e já trabalha com essa temática e se sente sobrecarregada e sem rede de apoio? Saiba que esse texto foi escrito especialmente para você, em um formato de bate papo, como se nós tivéssemos a oportunidade de sentar e tomar um café. 

Nós pensamos em quatro perguntas bem abrangentes sobre a atuação com mulheres que estão ou saíram de relacionamentos abusivos e deixamos aqui um recado amoroso: tente não se cobrar ou se autoavaliar negativamente caso alguns elementos do texto não façam parte da sua realidade enquanto profissional no momento. Lembre-se, somos grandes defensoras do diálogo construtivo para uma prática profissional mais acolhedora com as mulheres vítimas de abuso. Passe o seu café e venha conversar com a gente! 🙂

O que todo profissional da psicologia precisa saber para atuar com mulheres em situação de violência?

Poderíamos começar essa resposta de várias maneiras. Podemos dizer que é importante conhecer sobre como uma relação abusiva é construída, quais são os tipos de abuso e como eles se manifestam, qual é a dinâmica desse tipo de relação, quais são os efeitos psicológicos e consequências do abuso e mais uma infinidade de coisas, algumas das quais você também encontra no nosso blog . Tudo isso é muito importante SABER.

Mas para atuar na clínica com mulheres em situação de violência e até em outros espaços – uma vez que o abuso está muito perto de nós, independente de classe social, nível de escolaridade e raça – um outro ponto importante é RECONHECER que estamos inseridas em uma cultura heteropatriarcal e machista. As variáveis culturais vão atravessar muito o nosso trabalho e até o que compreendemos sobre o que é abuso. Se na nossa cultura, por exemplo, eu acho aceitável alguns comportamentos ou “piadas” ou situações entre casais que eu compreenda como “coisas de casal”, eu posso ter mais dificuldade para identificar vários elementos que estarão sendo apresentados no relato da pessoa que eu atendo. 

Também é importante reconhecer que a psicologia sozinha não tem dado conta do fenômeno, é necessário atuar em parceria com advogadas, psiquiatras (o mais comum na nossa área), se informar sobre a escrita de documentos, ter um conhecimento mínimo sobre algumas ações que precisam acontecer visando a proteção da vítima e da profissional. É muito comum as mulheres chegarem no consultório perguntando se elas saírem de casa isso é abandono do lar, por exemplo, trazendo dúvidas sobre o fato de ganharem menos e terem receio do pai do filho delas ficar com a guarda da criança, tendo medo de viver um processo litigioso e querendo apoio/encorajamento para tentar um acordo com o abusador. Diante dos exemplos descritos acima, o quanto você avalia que tem de conhecimento para informar e acolher essa mulher? O nosso texto foi pensado em uma proposta bem interativa mesmo, você pode fazer esse exercício em alguns minutos e depois continuar, ok? 

O profissional da psicologia terá que ter esse conhecimento para, ao analisar a função dessas falas, orientar da melhor maneira, fazer os encaminhamentos necessários e pensar juntos em possibilidades e saídas. 

Por isso também é importante saber que é necessário ter DISPONIBILIDADE para o atendimento de mulheres em situação de violência. Ter disponibilidade no que diz respeito ao tempo e ao seu momento de vida porque, geralmente, é comum intervir em situações de crise, trabalhar para construir uma rede de apoio entre profissionais que vão atuar no caso, buscar supervisores especializados e uma formação contínua na área. Sempre falamos que são casos em que provavelmente haverá uma grande demanda entre o intervalo das consultas, pelo menos no início do processo psicoterapêutico ou em alguns momentos do processo devido ao andamento do caso. É comum que, quando o ciclo da violência entrar em ação, nós sejamos acionadas antes de qualquer outra pessoa da rede de apoio dela, se é que ela tem rede de apoio. Aliás, você já teve a oportunidade de aprender a identificar um ciclo de violência e, a partir disso, fazer orientações protetivas às suas pacientes?

O que é mais difícil no dia a dia da profissional que trabalha com abuso?

Muitas coisas são um desafio no cotidiano quando se trabalha no combate à violência. Estar em contato com os relatos de situações tão desafiadoras nos sensibiliza muito. Para muitas mulheres, deixar um relacionamento abusivo é sinônimo de deixar tudo para trás, literalmente. Já tivemos casos na NEA onde a nossa paciente saiu de casa com a roupa do corpo por ser uma situação extrema de violência. O abuso é algo desastroso na vida das mulheres e crianças e, de acordo com Judith Herman, toda a comunidade ao redor dessa mulher também está adoecida. 

E aqui cabem alguns recortes, é claro! Para muitas de nós, sair de uma relação abusiva pode ser sinônimo de passar fome com os filhos, para outras isso é sinônimo de enfrentar uma batalha altamente desgastante na justiça, porque se trata de um parceiro muito influente, muito rico, muito poderoso. Mas fato é que acompanhar de perto as situações de violência é fator de vulnerabilidade para os profissionais e, a depender da nossa história de vida, isso pode contribuir para o nosso adoecimento. Fica claro para você essa relação entre aceitar o caso e sentir que tem condições de conduzi-lo? Lembre-se que esse texto “bate papo” tem a função de fazer você olhar para si, enquanto pessoa e enquanto profissional da psicologia. 

Uma das coisas mais desafiadoras no nosso dia a dia é ter que ter coragem para nomear as violências – dizer o nome das coisas tais como elas são (aqui um link com a live da Não Era Amor em colaboração com o canal dos Berrekas, sobre a importância de termos os conceitos muito claros). Às vezes, por exemplo, a mulher que estamos atendendo na clínica está naturalizando uma prática sexual onde ela cede pra evitar conflitos com a parceria ou onde a parceria insiste na relação e é aí que a gente precisa ter coragem de dizer o que precisa ser dito, que isso é violência sexual, estupro, se for esse o caso. É algo que exige muito de nós e, obviamente, não basta nomear, precisamos saber manejar tudo o que vem depois disso, investigar questões de trauma e buscar os apoios necessários para ela. Situações assim já aconteceram com você? Você se recorda do que sentiu e de como conduziu? 

Outra grande dificuldade passa por compreender que existe uma vida antes e uma vida depois de iniciar o trabalho com violências – o desgaste da profissional é bem grande e precisamos de muito apoio das colegas para podermos descansar, deixando alguém de plantão durante o nosso período de férias, por exemplo. Isso já é comum por aí ou essa ideia de ter rede de apoio para poder descansar é nova para você? 

Por que a psicoterapia especializada é importante?

A psicoterapia especializada é importante porque, enquanto sociedade, estamos falhando com mulheres e crianças. Ou seja, repetidas vezes recebemos pacientes que foram revitimizadas nos consultórios, com um histórico de vida marcado por violências que não foram nomeadas – ou seja, não podemos atuar como se estivéssemos com uma venda nos olhos. 

E por que nós dizemos isso? Há inúmeras situações em que o relacionamento não foi classificado como abusivo em atendimento clínico, mesmo com todos os critérios para esse diagnóstico sendo manifestados na relação. Ou seja, muitas vezes é a própria paciente que passa a buscar informações sobre o que estava vivendo, pra tentar entender e  essa demora, devido a falta de informação sobre o que está acontecendo no relacionamento, implica diretamente em uma maior exposição ao ciclo da violência e todos os riscos que derivam dele. É um tempo de vida irreparável com prejuízos à saúde física, emocional e à garantia de direitos de mulheres e crianças. Aqui o nosso café ficou um pouquinho mais amargo, não é mesmo? Os impactos são gigantescos e, muitas vezes, temos as melhores intenções de ajudar, mas não sabemos como ser uma ajuda efetiva e capacitada. 

Achamos importante colocar exemplos  do que uma profissional da psicologia inserida nessa cultura pode dizer para as mulheres em RA e que tem essa cara de “vendas nos olhos”, gerando revitimizações e invalidações de relato: “Casamento é difícil mesmo”; “Relacionamento exige dedicação e entrega”; “Mas o que será que o seu comportamento produziu nele”. Ainda, essa profissional pode achar que a paciente está “desorganizada na rotina dela” (especialmente se ela for uma mãe e a profissional estiver totalmente desconectada das questões que perpassam o adoecimento de mulheres, de modo geral e, mais ainda, de mulheres mães, carga mental e etc.) e propor “alternativas” para paciente ficar mais produtiva na rotina. Pode ainda não reconhecer os mecanismos de opressão das mulheres que, historicamente, estão à margem e sobrecarregadas pela economia de cuidados, desconsiderar a solidão materna, compreender essa mulher como “poliqueixosa”, como pouco habilidosa. Não é incomum e não está distante de nós, da nossa formação e prática, esse tipo de condução. Infelizmente.

A psicoterapia especializada é importante porque nós, enquanto profissionais que escolhemos atender mulheres em situação de violência, não podemos fazer o que a sociedade já faz lá fora, é necessário compreender e sentir que a vítima não tem culpa. O olhar especializado também é necessário para indicar, quando necessário,  profissionais de outras áreas para somar ao caso, como profissionais do direito especialistas em direito da mulher, recomendar uma assistente técnica em casos de falsa acusação de alienação parental. Aliás, como conduzir um caso clínico em meio a toda a litigância abusiva praticada contra a sua paciente? Esses termos são familiares para você?  

Existe algo que a psicologia precisa fazer para mudar esse cenário pensando no atendimento às mulheres vítimas?

Sim, existem muitas coisas e sabemos que precisamos trabalhar em conjunto para conseguir mudar esse cenário. O objetivo da Não Era Amor é o de não amargar ainda mais o seu café: o caminho para isso é longo, mas pode ser muito gratificante. 

Precisamos de produção científica sobre o tema, precisamos de mulheres pesquisando o fenômeno. Alexandra Rutherford diz, em tradução livre, que os estudos feministas demonstraram repetidamente que “como” e “o que conhecemos” depende de quem somos (“Feminist scholarship has repeatedly demonstrated that how and what we come to know depends on who we are”) (Morawski, 1990, p. 175). É preciso compreender que a psicologia falha na compreensão do fenômeno e que isso não é culpa das profissionais que, muitas vezes, tem motivações das mais nobres para ajudar as mulheres vítimas de violência. Infelizmente, somos inclinadas a reproduzir na prática clínica o que aprendemos na formação e nós não estamos aprendendo sobre manejo clínico em casos de relacionamentos abusivos e, consequentemente, acabamos seguindo as orientações que se aplicam a relações saudáveis ou não abusivas. É por isso que você pode sentir que “não funciona”, “não muda” porque, de fato, é ineficaz.  

A Psicologia não pode assumir uma postura neutra, nós não podemos ser neutros diante da perpetração de violência e isso está descrito no nosso código de ética. As mulheres vítimas precisam ser acolhidas e validadas – muitos profissionais tentam entender o que ela fez e que produziu a violência, gerando revitimização. Aqui na Não Era Amor nós dizemos que só o abusador pode parar o abuso e que já passou da hora de invertermos a pergunta: por que será que eles se sentem tão à vontade para praticar abuso contra as mulheres? 

Pedimos desculpas se o seu café ficar um pouquinho mais amargo agora. É triste, mas é real e  é importante dizer que você, enquanto profissional, poderá ser alvo de ameaças e de intimidação. Só para esclarecer, o objetivo da pessoa que abusa é o de manter o poder e o controle que ela tem sobre a vítima e, qualquer pessoa que contribua para essa perda de espaço, pode virar alvo do abusador. Nós, enquanto psicólogas, vamos correr riscos e precisamos repensar a nossa atuação profissional considerando a necessidade de proteção às terapeutas. Mas, um passo importante foi dado com a resolução do CFP nº 9, de 18 de Julho de 2024,  que prevê a decisão da modalidade de atendimento, se presencial ou online, por parte da profissional.

Nesse nosso bate papo estilo café estendido, nós também achamos importante reforçar a importância de fazer supervisão dos casos e psicoterapia pessoal, porque estamos inseridas em uma cultura que tem vários “pontos cegos” para uma boa atuação profissional, inclusive podemos estar em um RA ou já termos vivido um e atender casos sob os efeitos psicológicos do abuso, o que não é nada recomendado (se você se identifica com isso e sente necessidade de ser cuidada, nos chame aqui). Precisamos trazer esse alerta por atuarmos em uma profissão predominantemente feminina e, de acordo com a ONU mulheres – 1 a cada 3 mulheres viverá situações de abuso, ao longo da vida. 

Deixamos aqui o nosso abraço amoroso a todas as psis que estão sentindo que não poderão ser boas profissionais ou que não vão conseguir ajudar mulheres, porque elas mesmas estão passando por isso. Lembrem-se, vocês não estão sozinhas e a NEA só existe porque nós já vivemos isso e hoje reforçamos o nosso compromisso com uma psicologia especializada, oferecendo cursos para profissionais que realizam esse tipo de atendimento, palestras, workshops, treinamentos para empresas, atendimento psicológico especializado e geramos conteúdos de forma gratuita em nossas plataformas para que possamos informar e contribuir para uma maior conscientização social. Você pode encontrar mais sobre os nossos cursos diretamente no site da Não Era Amor ou na plataforma Sympla, onde está hospedado nosso próximo curso de Introdução à Metodologia Não Era Amor de Manejo em Relacionamentos Abusivos que ocorrerá agora em março de 2025!

Redação: Mariana Bilia, Psicóloga integrante da Não Era Amor

Conteúdo e revisão: Laís Pereira e Eveline Silva – psicólogas e diretoras da Não era Amor

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