O abuso nem sempre acaba com o fim do relacionamento abusivo. Muitas mulheres, mesmo após o término, continuam lidando com o abuso, mas em outro cenário: o da justiça. É comum que algumas questões só possam ser resolvidas judicialmente, como no caso de mulheres casadas e com filhos que necessitam do divórcio litigioso, bem como a definição da guarda e da pensão.
Quando o relacionamento abusivo acaba, o abusador começa a perder o poder e o controle que ele tinha sobre a vítima, perdendo, também, os seus inúmeros privilégios (a vida de luxo do abusador que sempre comentamos!).
Nesse término, o abusador usará de todas as ferramentas para recuperar o poder, os privilégios e manter a vítima no ciclo da violência, e não é raro que ele use o processo judicial como instrumento de abuso e tortura psicológica, com a intenção de que a vítima desista de seus pedidos e abra mão de seus direitos.
A litigância abusiva
Litigância abusiva, ou litigância de má-fé, é o nome dado a todo tipo de prática ou estratégia utilizada durante um processo judicial como forma de abuso. Pode acontecer em qualquer tipo de caso e com qualquer pessoa, mas é muito comum que as vítimas sejam mulheres em processos de família com histórico de relacionamento abusivo.
Como a litigância abusiva pode aparecer?
O abuso praticado dentro do processo judicial pode aparecer de várias formas. Alguns abusadores, por meio de seus advogados, adotam a estratégia de xingar, humilhar, ofender a parte contrária para tentar convencer o(a) juiz(a) de que ela não tem ou não deve ter determinado direito.
Com isso, muitas mulheres, que acreditavam estarem livres do abuso após o término, se veem exaustas, sendo sugadas novamente para o ciclo da violência, e, em alguns casos, passam a cogitar reatar o casamento, por exemplo, ou abrir mão de direitos, especialmente aqueles relativos aos bens.
Também não é raro vermos pais que nunca foram verdadeiramente presentes na vida dos filhos brigarem pela guarda das crianças, usando de ofensas, humilhações e até mesmo falsas acusações de alienação parental* contra a mãe, chamando-a de “louca” e “vingativa”, com a única intenção de atingi-la.
Fica claro, nesses casos, que a pessoa que abusa não tem qualquer interesse no bem estar dos filhos e filhas, mas apenas em gerar sofrimento para a mulher e recuperar o poder que tinha sobre ela durante o relacionamento.
Outros pais mentem sobre sua real condição financeira, ocultando rendimentos para alegar que podem contribuir com um baixo valor a título de pensão alimentícia para os filhos. Com isso, a criança, que poderia ter mais qualidade de vida, não tem essa possibilidade, e a mãe fica sobrecarregada, seja porque precisa trabalhar mais para arcar com todas as despesas familiares, seja em razão do sofrimento gerado pela dificuldade financeira.
A apresentação de diversos recursos sem fundamento, ou o ajuizamento de várias ações, também sem fundamento contra a ex-mulher, são estratégias de litigância abusiva, pois, em geral, visam atrasar o andamento do processo, protelar a decisão final e manter a vítima presa a dezenas de procedimentos judiciais durante anos. Esses são alguns exemplos, mas a litigância abusiva pode aparecer de diversas formas.
Sabemos que passar por um processo judicial é desgastante e pode gerar sofrimento, mas é preciso estar alerta se esse processo passa a ser usado como um instrumento de violência. Também não podemos ignorar que a litigância abusiva só existe porque a pessoa que abusa tem – ou é – um advogado que também abusa. Isso porque, num processo judicial, só é possível se manifestar por meio de advogado(a); logo, as estratégias de humilhação, ofensas, inverdades etc. são colocadas em prática pelo representante da pessoa que abusa.
Abuso psicológico e financeiro são consequências da litigância abusiva
Não é difícil imaginar o quanto a litigância abusiva pode afetar a vítima.
Afinal, essa é uma forma de continuar praticando abuso psicológico contra a mulher, que, através das páginas do processo, continua sofrendo humilhações, ofensas, gaslighting etc. Os argumentos violentos, os longos procedimentos, as diversas ações judiciais, tudo isso mantêm a vítima próxima do abuso e, direta ou indiretamente, impossibilitam o contato zero, que seria a melhor estratégia após o fim do relacionamento abusivo.
Nos casos em que os efeitos do abuso são mais intensos, chegando ao estresse pós-traumático, por exemplo, há o risco de os efeitos da síndrome se agravarem, prejudicando a evolução do tratamento e a cura do trauma.
Além disso, a litigância abusiva também é uma forma de abuso financeiro, pois, para se defender, a vítima precisará arcar com honorários de advogada e custas processuais, no mínimo. E quanto mais procedimentos, quanto mais longos forem os processos, maiores serão essas despesas.
O que fazer se você estiver sofrendo litigância abusiva?
A litigância abusiva é um conceito jurídico e está regulada nos artigos 79 a 81 do Código de Processo Civil. A norma se aplica a todo tipo de processo civil, inclusive aqueles decorrentes de relacionamento abusivo.
Se a mulher estiver sofrendo litigância abusiva, a depender do caso e da comprovação, o abusador poderá ser condenado a indenizar a vítima pelos prejuízos sofridos, como honorários de advogada e custas processuais, além de pagar uma multa ao Judiciário.
Porém, precisamos deixar claro que, embora essa penalidade esteja prevista na lei, isso não quer dizer que será simples conseguir a sua aplicação.
O pedido de punição do abusador por litigância abusiva com certeza se transformará numa nova batalha – e é preciso analisar se vale a pena lutar. Afinal, não podemos nos esquecer que o Judiciário também é uma instituição machista e patriarcal.
A Não Era Amor apoia e incentiva a denúncia, mas recomendamos, sempre, contar com uma advogada especializada, de confiança, para orientar sobre o melhor caminho para o seu caso. Quanto mais poderoso for o abusador, mais preparada você precisará estar.
É importantíssimo, também, contar com o apoio de uma terapeuta especializada em relacionamentos abusivos durante o processo, pois, além das consequências da litigância abusiva, não é raro que, durante o procedimento, episódios de abuso ocorridos no passado venham à tona, trazendo consigo efeitos psicológicos já superados. Saiba mais sobre a importância da terapia especializada clicando aqui.
Lembre-se que você não está sozinha. Se informe, se liberte!
*A falsa acusação de alienação parental é um tema delicado e merece uma análise à parte, pois decorre de uma lei problemática que, na teoria, deveria proteger crianças de abusos cometidos por pais e mães, mas, na prática, se tornou mais um instrumento de abuso contra as mulheres. Para entender melhor, recomendamos a leitura da Nota Técnica 01/2019 emitida pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, clicando aqui.
Redação: Thay Tanure, Redatora da Não Era Amor & Melissa Santana, Advogada da Não Era Amor | OAB/MG 167.526