No dia dos namorados, há uma grande visibilidade em torno dos relacionamentos amorosos. Nas redes sociais, observa-se um movimento de compartilhamento de declarações amorosas em que casais celebram a sua união, por vezes, de forma bastante romantizada. Mas qual é o problema disso?
A romantização
A palavra “romantizada”, utilizada no parágrafo anterior, se refere ao “amor romântico”. O amor romântico é o responsável por construir culturalmente a ideia de que encontraremos nossa alma gêmea, nossa metade da laranja. Ou seja, que encontraremos alguém que nos completa, e que, portanto, também seremos o que falta para o nosso par, fazendo com que sintamos uma obrigação de fornecer tudo o que o nosso par romântico precisa.
Junto a isso, o amor romântico prega que a entidade casal é superior a todas as outras relações e que precisamos priorizá-la acima de qualquer coisa (o que é válido somente para mulheres, é claro). Essa priorização do casal pode promover um isolamento social deste em relação às demais pessoas que antes compunham os seus ciclos sociais, se tornando um fator de vulnerabilidade para a vítima dentro de um Relacionamento Abusivo (RA). A obrigação moral de priorizar o relacionamento acima de qualquer coisa, também faz com que as outras esferas da vida de uma mulher em um RA se enfraqueçam (como seus estudos, carreira, amizades e hobbies) abrindo espaço para que seja criada uma dependência emocional do parceiro.
E o que isso tem a ver com o dia dos namorados?
Os posts romantizados, como mencionado anteriormente, que são feitos nessa data, reafirmam toda essa pedagogia amorosa problemática do Amor Romântico, construindo um clima favorável aos abusadores. Esse pode ser o momento em que eles podem utilizar-se para reconquistar a mulher vítima de abuso. Ou seja, podem fazer dessa data a lua de mel do ciclo da violência.
A lua de mel acontece para compensar a vítima dos maus tratos e nutrir o efeito psicológico da esperança, dando a falsa ideia de que “agora vai ser diferente”, anulando ou minimizando os efeitos dos atos de violência cometidos. Além disso, essa fase tem o poder de fazer com que a vítima esqueça a raiva ou acredite que os abusos não foram intencionais, ou até pode fazê-la acreditar ter sido responsável por levar o parceiro a cometê-los.
Não podemos subestimar o impacto da lua de mel: ela tem um poder muito forte de manter a vítima no relacionamento abusivo, ela é responsável por uma série de efeitos psicológicos que essa vítima vai sentir, como a confusão mental, a culpa, a pena e a esperança. Nessa fase, a mulher tem um vislumbre daquele cara que, na primeira fase de construção do relacionamento abusivo, ou seja, na fase de encantamento (em que pode haver o love bombing), a fez se apaixonar e acreditar que tinha mesmo encontrado o seu príncipe encantado. Por vê-lo ali em sua frente novamente, e por idealizar esse parceiro em razão do amor romântico, acredita que é possível viver seu “felizes para sempre” com ele, que é possível que ele passe a ser somente esse homem romântico e carinhoso que se apresenta ali para ela naquele momento.
Outros riscos das postagens feitas por casais que estão em RA no Dia dos Namorados
Pelo dia dos namorados ser uma data em que os casais estão celebrando a sua união (o que é visto socialmente como uma conquista extremamente importante especialmente na vida das mulheres), abusadores ou até mesmo vítimas (por vezes compelidas pelo abusador) podem fazer postagens que escondem a violência vivida no cotidiano, ampliando a imagem de relacionamento feliz, dificultando que essa vítima busque e receba ajuda especializada e suporte social, visto que ela pode sentir vergonha diante da imagem que é passada do seu relacionamento para as outras pessoas, em contraste com a verdade vivida no cotidiano. É relevante destacar que tentar manter as aparências é também uma forma de negar o abuso.
As pessoas de fora podem olhar para essas postagens, e, iludidas pela forma como esse abusador se apresenta para elas, acreditar que ele é um parceiro realmente incrível, reforçando isso para a vítima. O que também dificulta que essa vítima conte o que está passando, afinal, todos o acham maravilhoso! Nesse cenário, se ela contar sobre os abusos, há algumas hipóteses possíveis: 1) podem achar que ela está mentindo, 2) podem achar que é ela quem está fazendo algo errado, inclusive ela mesma pode se sentir culpada por ver que ele só não é maravilhoso com ela, e acreditar que ela é quem precisa mudar.
Por que é importante falarmos disso tudo?
Falar de relacionamento abusivo nessa data, é uma forma de lembrar às mulheres de que o abuso que estão vivendo não é culpa delas, de incentivá-las a buscar ajuda, inclusive ajuda profissional especializada, e de alertar toda a sociedade sobre o que se passa num relacionamento abusivo. (Inclusive, temos uma campanha na Não era Amor, que é a #NãoEraAmorQuando, que a gente faz todo ano no dia dos namorados, em que mulheres enchem as redes sociais com relatos de situações de abuso que muitas vezes podem ser confundidas com amor ou cuidado).
Alertar a sociedade de toda a complexidade de um relacionamento abusivo e suas consequências, ajuda a construir uma sociedade mais atenta às violências, inclusive as que são mais ocultas/sutis, e a qualificar mais pessoas para serem rede de apoio de mulheres que sofrem violência, possibilitando que a vítima tenha seu relato escutado e validado, e que receba a ajuda de que precisa, superando a barreira do isolamento social. Precisamos lembrar que o isolamento é a estratégia utilizada pelo abusador para que a mulher fique mais dependente dele e permaneça sob seu controle, afastando da parceira toda e qualquer pessoa que possa questionar ou perceber a violência e, consequentemente, tirá-la de seu domínio.
Se você é Rede de Apoio de uma mulher que está em um Relacionamento Abusivo, ou quer ser mas não sabe como, recomendamos que assista a esse vídeo de como ajudar:
Por fim, é consenso na literatura científica que a violência contra a mulher é uma questão de saúde pública, vez que traz prejuízos não só às mulheres vítimas, mas para toda a sociedade. A psiquiatra e pesquisadora estadunidense Judith Herman afirma, inclusive, que “quando uma mulher está num RA, toda a comunidade ao redor dela está adoecida”. Por isso, esse é um assunto que impacta a todas as pessoas, e não só as mulheres vítimas de abuso. É fundamental um compromisso ético-político com a transformação dessa realidade por parte de toda a sociedade e instituições, visando a proteção de mulheres e crianças, e também o bem estar social de modo geral.
Redação: Milena Drummond, Psicóloga Clínica da Não Era Amor
Conteúdo e revisão: Laís Pereira, psicóloga e Diretora da Não Era Amor